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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Medeia


Melhor seria não ter olhos para a ver

e me deixar fascinar

pelo seu olhar

 

Melhor fora ser surdo e mudo

para não poder ouvir o seu canto de sereia

nem poder responder e me deixar enredar

nos encantos da sua melopeia

 

Não ter braços para a abraçar

sem mais a poder largar

 

Nem ter sexo para a desejar

e ela

por reflexo

me poder a mim me cobiçar

 

Melhor seria que eu não tivesse coração

nem Razão

para não cair nesta cruel contradição

 

Mas a vida é assim

e assim sendo

não me arrependo

 

Mais vale sentir todos os sentidos abertos e despertos

e não a poder largar

nem ela

a mim

me poder abandonar

 

Mais vale sentir-me Jasão aprisionado

a seu lado

e sabê-la

a ela

a sereia Medeia

falaz

a mim acorrentada

sem poder fugir

 

 

Ouvir seu pranto de mulher apaixonada

sem ser capaz de resistir

 

Sem deixar de acreditar

que o espirito acabará por se libertar

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 24 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Canção de Abril a abrir

 


Nota prévia:

Poema escrito na Ilha de Moçambique, em 25 de Abril de 1971, precisamente. Por isso o tomo como uma inusitada, angustiada, saudosa e confusa premonição da revolução de 25 de Abril de 1974.

 

 

Canção de Abril a abrir

 

Perpassam veleiros entre mim e a História

Nesta tarde inglória de Abril

A abrir

 

Prostrado que estou em praia lânguida

Assalta-me a ideia cândida

De negar o corpo à guerra

E regressar à minha terra

 

Neste eterno mar de desentendimento

Sereno depois que em mim amainou

O Inverno do meu descontentamento

 

Calmo oceano para mim que sou do interior

Para quem nenhum mar é forma de vida

Mas tão somente praia perdida

Onde a minha alma fica dormente

 

Alma de quem está ausente

A travar batalhas de tormento

A tecer mortalhas de sentimento

Com que o coração envolve a razão

 

Noutro veleiro o horizonte se materializa, agora

À hora de me ir embora

 

Não é meu este mar

Esta água e este ar

É lá e não aqui a minha terra

 

Nenhuma é a minha guerra

 

Justo é viver em paz

Seja lá onde for

A mim tanto me faz

 

Ainda que injusto fosse o desforço

Tão fraco é o fosso

Que frágil veleiro consegue transpor

 

Quantas vez mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Heroico será ir além do Bojador

Voltar à terra quando se é do interior

Se não tem o mar por ganha pão

Muito menos a morte por condição

 

Humano para mim

Ainda assim

Será sonhar cruzar de novo o mar

Idear novo Império

Outro Ultramar

Feito de História e luso Verbo

Sem sombra de vitupério

 

Abrir os olhos na neblina

Assumir o destino divino

Passar a sina e o sinal

Das novas pátrias

Dádivas do pródigo Portugal

 

Pátrias sem equadores a cortar a Justiça

Nem cores a estigmatizar as almas

 

Calmas são as tardes de Abril

A abrir

 

Ouço embevecido o frenesim das batucadas

Sorvo o sabor de mangas maduras

Sofro a saudade das melodias electricistas

O sofrimento das romãs ensanguentadas

A dor do caju retorcido

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

                                                        

Ilha de Moçambique, 25 de Abril de 1971

Henrique António Pedro

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Assobio e sigo em frente


Comigo é assim

E consigo

Por certo

Também

Já se vê

 

Milhares de ideias me afloram à mente

Assim de repente

A cada instante

Vindas sabe-se lá de onde

Como

E porquê

 

Muitas são absurdas

Aborridas

Negativas

Carregam tristeza

São lembranças de coisas sofridas

Temores de dores ainda não vencidas

 

São sentimentos de desânimo

Que nos amarram e torturam

Nos oprimem e angustiam

Sem nexo nem sentido

 

Comigo é assim

Dessas ideias aprendi a libertar-me

Viro-lhe as costas

E sigo em frente a assobiar

 

Mato-as à nascença

Nem lhes dou tempo sequer de respirar

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 9 de Outubro de 2008

Henrique António Pedro 

in Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais – 2009)

 

 

domingo, 7 de abril de 2024

Amar mais que gostar e desejar


Gostar

Gostamos do que nos agrada

 

Dos olhos

Dos cabelos

Da voz

Dos rostos

Do porte

Do decote

 

São gostos

 

Desejar

Desejamos o que nos dá prazer

 

Os lábios

Os abraços

Os beijos

Os seios

 

São desejos

 

Amar porém

Amamos a quem

Por quem

Sentimos amor

Mesmo que tal nos traga dor

 

Não amamos os olhos

Os lábios

Os seios

A face

Ou o traseiro

 

Amar

Amamos tudo

O todo

Por inteiro

 

Há gosto e gostar

Prazer e desejo

Amar é mais que gostar e desejar

 

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 5 de Novembro de 2009

Henrique António Pedro

 

terça-feira, 26 de março de 2024

Foi Ele!


Foi Ele!

 

Por insondável desígnio do Criador

o humano ser

vórtice da Criação

ficou circunscrito a nascer e a morrer

insano

constrito

sua triste condição

 

A viver no fumo do pecado

à dor e à morte condenado

sem outro rumo ou norte

e sem remissão

 

A sofrer na obscuridade

sem Luz que o pudesse iluminar

e resgatar

 

Foi Ele!

que com Sua Vida, Morte e Ressurreição

elevou o humano ser à dimensão da Verdade

lhe abriu as portas da Eternidade

lhe indicou o caminho

o ensinou a caminhar

e com o Seu Amor e Carinho

o convidou a entrar

 

Foi Ele!

que padeceu no Calvário

para deste doloroso fadário

nos salvar

 

Mas a humana insanidade não parou de aumentar

e a Humanidade

está de novo a Ele e com Ele

a sim mesma se crucificar

 

Por isso Jesus vai voltar

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 25 de Março de 2010

Henrique António Pedro

 

quarta-feira, 20 de março de 2024

A que horas é o funeral?

 


Há Domingos assim

sem nada que fazer

em que apenas vivemos

por viver

tão pouco pensamos

em morrer

 

São dias de manhãs enubladas

de montanhas submersas

em que o Sol se passeia pelos campos

só lá mais para o cair da tarde

 

Dias em que cada um de nós

tem um percurso próprio dentro de si

e outros com os outros

e todos outros mais

por esse mundo fora

 

Dias em que caminho um caminho privado

num mundo meu, privativo

onde vivo livre e cativo

 

Mundo em que tudo gira à volta de mim

num vórtice interior demolidor

aflitivo

que varre o próprio Universo

do espaço-tempo

 

Quando assim é

deixo-me ficar quedo

parado

com cara de enterro

a pensar

e a esfregar o nariz

 

Sem me sentir triste

ou alegre

tão pouco angustiado

apenas cismado

e devaneio

 

Como quando como hoje morre alguém

que pouco ou nada me diz

mas que ainda assim homenageio

 

A propósito:

 - A que horas é o funeral?

 

Vale de Salgueiro, domingo, 7 de Novembro de 2010

Henrique António Pedro