Eu já fui rei
… um dia
Por breves mas felizes anos
de um plácido e amplo reino
sem equívocos nem enganos
que tinha por singular palácio
um velho e carcomido castanheiro
No tempo em que os montanheses
ainda usavam tamancos de amieiro
apascentavam rebanhos na serra
e desmatavam a terra safara
para semear searas de centeio
Enquanto dóceis ruminantes
manadas de bois e vacas
pastavam nos lameiros verdejantes
e nos úberes linhares
floriam abóboras e batatas
Palácio plantado num espaço breve
a norte de Vila Nova de Monforte
num contraforte isolado
votado ao sol e à neve
na suave serra da Padrela
Não havia então outra aldeia
tão fresca, farta e sadia
como ela
A árvore milenar erguia-se majestosa
à entrada do humilde povoado
com outras castaneáceas menores
a compor a sua corte silenciosa
um souto frondoso e bem copado
E diz-me o douto coração da memória
e da imaginação
de tão longínqua tradição
que já os próceres suevos e godos
por ali reuniam os seus povos em comícios
sob a ramagem de místicos castanheiros
ao luar dos mágicos solstícios
ou em certas manhãs de nevoeiro
para dirimir querelas entre clãs
celebrar alegres festejos rituais
consumar sagrados esponsais
ou eleger chefes guerreiros
sempre que por toda a serra
sopravam ventos de guerra
Foi também à sua beira
tão perto que muito ouriço
dava à luz já sobre o adro
que seria mais tarde edificado
pequeno templo votado a Santo António
oficina de religião e virtude
onde o aldeão piedoso orava
quebrantava o enguiço
e se demarcava do demónio
E a dois passos dali
mal espaçados
murmurejava noite e dia
a cristalina fonte comunitária
que dessedentava humanos
e animais adrede
e a água que era demais
seguia seu curso livremente
pela natureza em frente
tecendo rendilhada líquida rede
Até que nos tempos ditos modernos
a empestaram com pesticidas
supostamente para livrar de pragas a terra
mas que maiores chagas abriram
no ecossistema de toda a Serra
Era aquele o meu reino
de encanto
e os meus aposentos reais
as entranhas do tronco cavernoso
todas moldadas em castanho
onde apenas entrava quem eu queria
gente do meu tamanho
e que se aventurava
a tanto
Ali me refugiava sempre que a vida
cá fora me não sorria
ou recebia chamamento especial
para viajar pelo Cosmos
dentro de um castanheiro carcomido
transformado em nave espacial
Era eu o rei daquele plácido reino
com perfumado palácio no seio
dum carcomido castanheiro
onde aprendi a enfrentar todo o mal
a não ter medo de sonhar
a ser senhor de mim mesmo
e a ter um domínio só meu
E também aprendi
por experiência interior
nas entranhas carcomidas
de um castanheiro milenar
que a única competição justa e lícita
de um homem verdadeiro
é consigo próprio na verdade
E que com todos os demais
que no talento e no saber
nascem e são desiguais
apenas deverá haver
solidariedade
Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 2007
Henrique António Pedro
In Anamnesis (prosaYpoesia) 1.ª Edição: Janeiro de
2016