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terça-feira, 6 de março de 2018

A destempo no tempo da eira



Gerou-se vento
a destempo
no tempo
da eira

Que levantou palha
e poeira
lhe agitou a saia de cambraia
e lhe soltou a cabeleira

Liberta-se malsão
um putativo pensamento
sem siso
nem tino
no pino do Verão

Um desejo

A ideia
de um beijo
que serpenteia
qual pulverinho
de euforia
no coração

Lança-se em correria louca
de alegria
para detrás do palheiro

Não tarda ouve-se um grito
aflito
um esgar
de aflição
de mulher desflorada
sua triste nova condição

O choro soluçado
pelo amor primeiro
que se foi embora
feito folha solta
e já não volta
mais

Um queixume prolongado
agora

Ais
de mãe solteira
a varrer a eira
rodeada da filharada
de muitos pais

in Anamnesis- 2106


domingo, 4 de março de 2018

Minha Pátria Montanha



Minha Pátria Montanha

1

T r á s
o s
M o n t e s

Terra e Povo
Pátria e Palavra

Eco
vindo
da origem
dos tempos
sinfonia
de montes
vales
e ventos

2

Minha Pátria Montanha
Trás-os-Montes d` além
do sol-pôr atrás
de onde o Sol vem
primeiro
de afagar searas
de batata e centeio
e de acender a lareira da vida
com suor e trabalho
trasfogueiro de sonho
de ilusão tenaz

10

Minha Pátria Montanha
Monforte de Rio Livre
memória de gente boa e farta
condenada à liberdade
de trabalhar sol a sol
em verdes prados e úberes linhares
defendida pelas hastes dos bois
que retouçavam nos lameiros
assim era a vida inteira

11

Minha Pátria Montanha
meu berço de infância doirado
de que sinto saudades sem fim
bem fundo no coração
guardadas em arcas encoiradas
dentro do mítico casão
minha torre de marfim
presbitério erguido por mãos godas
convertidas
e habitado por um presbítero  guerreiro
possivelmente chamado Eurico
e que bem poderei ter sido
... eu!

in Minha Pátria Montanha (Editora Ver o Verso-2005)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Das terras de Trás-os-Montes apartou Deus o mar



Das terras de Trás-os-Montes apartou Deus o mar

para que transmontano soubesse

que coisa é emigrar

e do lado de cá aprendesse

a força da palavra amar

e do lado de lá sentisse

que sabor tem ter saudade

 

 Das terras de Trás-os-Montes apartou Deus o mar

 um oceano de granito e xisto

 deixou em seu lugar

 para que transmontano aprendesse

 que coisa é labutar

 

 Das terras de Trás-os-Montes apartou Deus o mar

 férteis veigas de húmus

 deixou em seu lugar

 para que transmontano aprendesse

 a colher e a semear

 

 Em terras de Trás-os-Montes

 na parte mais altaneira

 criou Deus a Montanha

 com semente de castanha

 

 E na parte mais ribeira

 plantou a Terra Quente

 com ramos de oliveira

 trazidos do Oriente 

 

 in “Minha Mátria Terra Quente” (1.ª Edição Abril 2005)

Henrique António Pedro




sábado, 24 de fevereiro de 2018

Quereria morrer e ressuscitar


Sei que vivo
porque me angustio

Sei mais que me angustio
porque nenhum desejo
nenhum pensamento
nenhum sonho eu determino

Talvez apenas o sopro com que agito as pétalas de um flor
para espalhar 
no ar 
o seu perfume
e o meu amor

Mas tudo acontece em mim de forma irreflectida
mas tudo gostaria de ser eu a controlar

Queria ser capaz de parar o coração
e o cérebro
e continuar a pensar 
a viver
e a amar
a única forma de me libertar

A doença da morte é o sofrimento maior
o desafio maior que o homem enfrenta
e que só pelo amor
poderá vencer

Quereria morrer e ressuscitar como Jesus Cristo
e trazer de volta o meu testemunho
o meu humano registo

No mês de Junho
já em plena Primavera
sem ter ninguém à minha espera



terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Amar é um contra-senso ao que penso



Amar é um sonho

risonho

é sonhar

a sorrir

 

É voltar a ser criança

sem querer

 

É uma contradança

 

É ter a vida reservada

por tudo e por nada

 

É andar na lua pela rua

 

É sentir-se livre estando preso

 

É viver na ingenuidade

mas usar de malícias

nas delícias

de amor

fazer

 

É falar verdade

e mentir

a sorrir

 

É sofrer por prazer

 

Amar é contrário à razão

e faz mal ao coração

 

É um contra-senso

ao que penso

 

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 30 de Janeiro de 2009

Henrique António Pedro

 

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Por alma de quem lá tem…




Sou do tempo em que na minha amada Terra Quente transmontana
que Ceres prendou com searas de pão e trigo, vinhedos e pomares
e com o maior agro deleite que é o azeite, virgem como a Verdade
tinha força e sentido a palavra Caridade.

Começava-se o dia com o canto do galo ao halo do arrebol
esboroava-se o xisto à força da charrua e da enxada
martirizavam-se os corpos com o trabalho de sol a sol
migava-se o caldo com pão centeio, rijo como penedo
e alagavam-se os corações de suor e de saudade
daqueles que ousavam vencer o medo
em procura de melhor viver
nos caminhos desolados da emigração.

Aos sem eira nem beira não restava outra coisa, porém
que a mendicidade, a generosidade alheia e a resignação

Guardo na memória a alegria de uma infância feliz e sadia
mas ainda me dói a tristeza e sofrimento dos pedintes andrajosos
que sem nada terem de sua pertença
deambulavam de aldeia em aldeia e de casa em casa
à procura de uma brasa, de uma candeia acesa na lareira
que não lhes negasse o alento e a certeza de sustento
para o corpo sofrido de frio e doença.

Paravam no primeiro degrau da escada, batiam o bordão
e suspiravam um lamento, alijada a carga de dor e desilusão.

E quando o rafeiro se calava e os deixava fazer ouvir a sua prece
entoavam, com fervor e devoção, uma oração monocórdica
ladainha que misturava pai-nossos, malgas de caldo e ave-marias
com caridade, piedade e as almas que Deus tem, que já lá estão.

Era minha mãe a primeira a descer a escaleira, de coração condoído
já de almontolia na mão para atender o infeliz desafortunado
que ajoelhado soerguia o rosto, subia a voz e o tom da súplica
capaz de comover o coração mais empedernido:
 - Uma esmolinha…por alma de quem lá tem…!

Só quando o fio de azeite luzia em movimento para dentro da lata
que o infeliz trazia pendurada ao pescoço, se interrompia a triste litania
para deixar ver uma réstia de alegria e um tímido alvoroço
enquanto minha mãe despejava todo o azeite do seu coração
e mais o que trazia na almotolia, e respondia disfarçando a emoção:
- Deixe lá ficar as almas no lugar delas…que bem lá estão!

Era assim a solidariedade naquele tempo! Uma troca inocente
de parco conforto, caldo, pão e um dedal de azeite
pela prece de um desvalido imundo, pelas almas do outro mundo.

E também havia solidariedade no amanho do campo
nos desmandos da vida e nas horas de pranto
mas outra coisa era a Caridade de minha mãe
que fazia bem sem olhar a quem, e sem esperar nada de volta
nem sequer uma humilde lamúria, uma oração espúria.

Reinventaram agora, porém, a palavra solidariedade, para espanto,
a que também chamam de cooperação! Oh, óleo sacrossanto!
Já não é o azeite a moeda de troca. Negoceia-se agora mais alto!
Na verdade, é o negro e viscoso petróleo, e maior é o sobressalto!

Mas…

que solidariedade ou cooperação poderemos nós oferecer
à legião de desafortunados que agonizam na mais abjecta miséria
sem nada terem para troca, coisa alguma para dar de volta
tão pouco força anímica para um mero grito de revolta?

Solidariedade?! Com todos os machuchos, tiranos e nababos
que à míngua deixam os seus morrer à fome, à vista de toda gente?

Porque continuam os donos do mundo a lavar as mãos como Pilatos
agora no viscoso petróleo, o amaldiçoado óleo dos diabos
que lhes faz voar os jatos, envenena a Terra e promove a guerra?

Não merecerão esses nossos irmãos infelizes também ser,
por nós amados e que tudo façamos para os salvar?
Na certeza de que nada nos darão de volta, porque nada têm para dar!

Porque se não globaliza a cristã Caridade? Caridade, sim, a Caridade!
Como a paixão de Cristo por nós, a que S. Paulo chamou “knose”!
Que não tem nada de utópica, nem a ver com a filosófica gnose
e muito menos com a demagógica solidariedade!
É apenas uma questão de mero Amor!
De sentir a dor dos outros: amigos, inimigos ou neutros!

Caridade como a praticava minha mãe
e ainda a praticam muitas mães, por cá!
Como a praticou Agnes Gonxha Bojaxhiu, por todo o mundo
e como melhor se sentiu nas ruas da vergonha de Calcutá!

A maior arma de destruição maciça é a fome! Do corpo e da mente!
A que existe e a que está para vir!
Está à avista de toda a gente!
Porque se não mobilizam os exércitos para a destruir?



in Anamnesis (Janeiro de 2016)