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sábado, 6 de fevereiro de 2021

Não vá o poeta além do poema

 


Diverte-se a escrever poesia com o olhar

para eu ler na minha imaginação

 

A soprar palavras e perfumes

que sabe ateiam lumes no meu coração

 

Eu fico aflito por não saber se é lícito

o terno erotismo que leio

nem donde veio

aquele seu interesse por mim

 

Peço-lhe que seja mais explícita

ainda assim

que se deixe de cinismo

 

Que me mostre que não sofro de daltonismo

que me belisque

que pouse a sua a mão no meu coração

 

Responde-me com crueldade

fazendo valer a sua falsa verdade

dizendo-me que é apenas poesia

uma sua e minha divertida fantasia

o que de facto condiz

 

E ainda mais circunspeta me diz

que não vá o poeta além do poema

 

De pronto

sem condição

como que por magia

este tonto dilema

vira pura contemplação

 

Vale de Salgueiro, domingo, 13 de Março de 2011

Henrique António Pedro

 


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aos derradeiros guerreiros do Império

 


O  Império derradeiro da História

Que agora se esvai na memória

Os imolou

Sem lamento

 

E com eles se sepultou

No ataúde comum

Do esquecimento

 

Em lugar nenhum

 

Negros, brancos, amarelos

Sacrificados agnelos

Morreram de pé

Nas matas de Moçambique e de Angola

Nas olas da Guiné

Trespassados de balas

 

E por lá ficaram defuntos

Abandonados

Esquecidos

Insepultos

 

Que evangelho ou sortilégio

Que adulterada verdade

Que insana vontade

Que espúrio desígnio

Que místico saltério

Lhes traçou o destino

E os abandonou assim?

 

Sem choros

Ilusões

Raivas

Risos

Ou ranger de dentes

 

Apenas os corações penitentes

Distantes

De quem os amava

Pais, irmãos, amigos, amantes

A bater frementes

 

Ceifados na flor da idade

Viveram com frenesim

A sua trágica mocidade

Os derradeiros guerreiros

Do Ultimo Império da História

 

A pátria eterna os engrandece

E sente

A nação presente os desmerece

E esquece

 

A sua vida é uma vitória!

 Inglória!

Ainda assim


 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 26 de Março de 2009

Henrique António 


 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O último grito de Cristo na Cruz

 


O Seu último grito

Divino lamento

Não o soltou Cristo

Crucificado

No Calvário

Na Jerusalém daquele tempo

 

Ainda há pouco eu o ouvi

Muito bem

Em frenesi

Quando angustiado com o sofrimento

Que assola o mundo inteiro

Subia solitário a íngreme ladeira

Do Senhor dos Aflitos de Vale de Salgueiro

 

E desalentado com tanta canseira

Lhe perguntei:

- «Será preciso, Senhor que sofras Tu e nós muito mais?!

   Que soframos nós e Vós ainda mais?!»

 

De pronto o Crucificado me respondeu

Tão angustiado como eu:

- «Não, não! Eu sofro por vós

  Vós só precisais de amar mais

   e mais

   e mais!»

 

Vale de Salgueiro, 7 de Novembro de 2008 

in Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais-2009)


sábado, 23 de janeiro de 2021

A Santa Liberdade

 


(No dia mundial da Liberdade)

 

Liberdades há muitas.

E de muita cor

Muitas são mantas de retalho

Que não dão qualquer agasalho

E na verdade

Raras rimam com felicidade

 

 

Santas?! Nem tantas!

Duvido até que as haja

 

A melhor de todas, para mim, ainda assim

Não é dada por um qualquer ditador.

 

Prefiro a minha, porém

Eu que sou livre como o pardal pequenino

Que faz ninho no meu beiral

A lembrar-me que fui livre, sim

Quando era menino

Sem saber o que era prazer

E dor

Mal e o bem

 

Quando o mundo era tão pequenino

Que eu nem o via

Sequer dele me apercebia

Porque liberto sonhava

No céu aberto de amor

No seio de minha mãe.

 

Quando acabado de nascer

Ela me embalava

No berço do Criador

Sem eu me aperceber

 

Vale de Salgueiro, 23 de janeiro de 2021

Henrique António Pedro



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Quando a minha alma se ausenta para viajar

 


Quando a minha alma se ausenta para viajar

Há momentos em que nada sinto a doer
nenhuma espécie de dor

nem frio nem calor
nenhum desejo
nenhum motivo de prazer
nenhuma angústia
nenhuma ansiedade

nem antevejo nenhuma contrariedade


Momentos em que a minha proverbial amargura
anda fora

pela rua
e eu desisto de encontrar a verdade

Momentos em que a minha indiferença é tamanha

que me chega a parecer estranha


Que será que aconteceu?
Que estará para acontecer?

Não sei nem quero saber

 

A envelhecer ando desde que nasci
morrer ainda não morri
e a vida até me sorri

Talvez seja isso mesmo

isso tudo

nada de isso
ou não seja coisa nenhuma

Talvez seja só espuma de poesia
nem tristeza nem alegria
pura fantasia
sem os habituais dilemas

Talvez seja só a minha alma

que se ausenta para viajar
mas deixa a consciência em “stand by”

E como nada entra ou sai

do coração
a razão põe-se a regurgitar poemas

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 7 de Maio de 2010

Henrique Pedro

In “Introdução à Eternidade”

 

Quando l’anima mia si assenta per viaggiare

(Tradução para italiano por Manuela Romano)

 

Ci son momenti in cui nulla mi duole

nessuna specie di dolore

né freddo né calore

nessun desiderio

nessun motivo di piacere

nessuna angustia

nessuna ansietà

né prevedo nessuna contrarietà

 

Momenti in cui la mia proverbiale amarezza

se ne va

per la via

e io rinuncio a trovare la verità

 

Momenti in cui la mia indifferenza è così enorme

che giunge ad apparirmi abnorme 

 

Che mai sarà accaduto?

Che starà per accadere?

Non so né lo voglio sapere

 

Ad invecchiare mi avvio da che son nato

morire ancora non son morto

e la vita fin qui mi ha sorriso

 

Sarà forse proprio questo

tutto questo

niente di questo

o non è niente del tutto

 

Sarà forse solo schiuma di poesia

né tristezza né allegria 

pura fantasia

senza i soliti dilemmi

 

Sarà forse solo la mia anima

che si assenta per viaggiare

ma lascia la coscienza in “stand by”

 

E siccome nulla entra o esce

dal cuore

la ragione si mette a riversar poemi

 


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O burro do Pucareiro

 

O burro do Pucareiro

Na sábia prosápia de João Feliz, respeitado pensador, poeta e moralista popular, uma coisa era o Pucareiro outra era o burro do Pucareiro.

 Melhor dizendo, dizia João Feliz:

- Burro é o burro que é burro verdadeiro e não é o Pucareiro que é burro. Vamos lá a ver se nos entendemos!

Ainda que tão burro fosse o burro como o dono do burro, no dizer da Aida Malagueta que não podia com o Pucareiro, nem ele com ela, por uma questão antiga, coisas de amor e de ódio, ao que se dizia, já com tempo de serem esquecidas mas que cada dia mais se acirravam.

 Tudo começara anos atrás quando o Pucareiro na tradicional Serrada da Velha, despeitado com a Malagueta por razões que só eles saberão, se deu ao desplante de pôr a boca no embude, no alto da Canadinha sobranceiro à aldeia, noite adentro, e gritar o que todo o povo ouviu:

-Deus te perdoe Aidinha, Deus te queira perdoar, comigo tu já não te casas, para tia hás-de ficar.

Ainda a semana passada quando passavam um pelo outro, nos Ervançais, indo a Aida apanhar um manhuço de grelos para a ceia e vindo o Pucareiro de Miradezes montado no seu inseparável jumento, sentado entre uma caixa de sardinha e outra de chicharro, se ouviu um traque que levantou poeira e ribombou pelas redondezas qual maléfico polvorinho, não ficando claro, contudo, se foi o burro do Pucareiro se o Pucareiro ele próprio quem tal fenómeno produziu.

 Momentos antes o Pucareiro até saudara quem mais seguia no caminho, levando a mão ao chapéu e dizendo:

- Bons dias nos “deia” Deus.

Respostas, se as houve, foram abafadas pela inusitada ventosidade.

A Malagueta é que não achou graça nenhuma por desconfiar que se tratou de um acinte diabólico a ela dirigido, tivesse vindo do burro ou do dono porque era mais que sabido que estavam feitos um com o outro e ela bem se apercebeu que o Pucareiro dera, momentos antes, as palmadinhas do costume no pescoço da montada.

 Ostensivamente, por isso mesmo, não só não retribui os bons dias como respondeu à suposta afronta, alto e bom som, fazendo figas, tapando a cara como o lenço e voltando a cabeça para o lado:

- Prá carga e prá a besta que o larga! Tarrenego satanás!

A verdade é que o Pucareiro, tirando estas minudências até era um sujeito respeitado, respeitador e admirado pelas suas lendárias e divertidas patranhas. Histórias do arco-da-velha que corriam de boca em boca como sendo dele, embora muitas fossem de terceiros.

 As mais fantásticas e hilariantes teriam sido mesmo protagonizadas pelo visado, o sardinheiro Hilário Modesto, mais conhecido pelo Pucareiro, que delas tirava muita fama e pouco proveito.

Em tempos ter-se-á dedicado à venda de púcaros e caçoulos. Daí o epíteto de Pucareiro de que não mais se livrou. Mas, porque se dera conta, ao que dizem, de que o negócio dos púcaros só dava cacos e vendo como a Júlia Pardala progredia na vida, apesar de apenas viver da venda porta a porta de sardinha e afins, tanto que até já comprara o olival da Roteia, ao Tancredo, também o Pucareiro decidiu dependurar os púcaros e botar-se à venda ambulante de peixe. Deu-se bem o negócio, pelos vistos, porque não mais o largou.

Num abrir e fechar de olhos arranjou vasta clientela desde Miradeses às Aguieiras, o que não admira dada a fama que transportava misturada com a sardinha e o chicharro. Ir mais além já a tanto se não “astrevia” porque a mor das vezes se via obrigado a pernoitar por lá e no Verão o peixe depressa botava cheiro a fénico o que levava a que os clientes lhe torcessem o nariz.

Carregava o jumento em Rio Tordo, com duas ou três caixas de sardinha, uma ou duas de chicharro, trazidas pela camioneta da carreia que de Mirandela seguia para Valpaços e Chaves e ala por esses caminhos fora, vendendo aqui uma dúzia, além um quarteirão, até esgotar a carga.

 Jumento que educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher, como o próprio dizia. Jumento que ele mesmo baptizara de Albino sem o menor propósito sacrílego. Tanto que sempre que passavam defronte da igreja paroquial, o animal genuflectia uma das patas cerimoniosamente e o humano persignava-se, convicto, sem se apear. Uma cerimónia tocante para os mais piedosos.

Conta-se que um dia, porque teve que deixar o Albino na loja por conselho do ferrador dado que o animal tomara uma congestão de uvas e figos verdes, viu-se forçado a pedir emprestada a mula da Rosalina.

Lá está, observaria João Feliz se acaso isto ouvisse:

- Viu-se forçado a pedir a mula à Rosalina e não a mula da Rosalina. Mula que, por acaso, se chama Ruça e não Rosalina, para que não subsistam dúvidas.

Certo é que a mula da Rosalina, perdão, a mula que é da Rosalina, no regresso se recusou a entrar na barca, em Miradezes. Cena que não fizera à ida por ainda ser hora de lusco-fusco, por certo. Agora já o sol nascente tremeluzia no espelho de água do Rabaçal, onde também se refectiam as sombras movediças dos amieiros que a brisa matinal agitava. Talvez fossem elas a amedrontar o animal.

Apeou-se o Pucareiro, entrou na barca determinado e pôs-se a puxar a mula pela rédea, com toda a força que tinha. Mas a quadrúpede, teimosa que nem uma mula já se vê, com as quatro patas fincadas na margem lamacenta e com o focinho a soprar a água, recusava-se terminantemente a embarcar.

Instalou-se um olímpico tira teimas entre o Pucareiro e a mula da Rosalina, a mula que era da Rosalina, perdão, até que o sardinheiro, depois de muito puxar, teve este surpreendente lapsus linguae:

- Mais força tens mas mais mula do que eu não és!

 Posto isto, o sardinheiro dá um derradeiro puxão,  solta a rédea de um golpe, a mula cai de cangalhas na água, a carga solta-se e o peixe pôs-se de imediato a boiar rio a baixo, ao sabor da corrente e também teria nadado rio a cima, certamente, se acaso estivesse vivo.

 Recomposta, a mula da Rosalina, perdão a mula que é da Rosalia, depois que, a custo, conseguiu sair da água, desatou numa correria louca, montes arriba, só parando em Valverde.

Quanto às sardinhas e aos carapaus não tardaram a galgar o açude para só serem pescados à rede lá mais abaixo, por pescadores de Lilela, espantados com tais peixes a boiar por entre bogas e barbos. O próprio guarda-rios coçou o queixo embasbacado sem saber que lei aplicar perante tão rara e ilícita pescaria.

Nada disto diz, porém, do inimaginável Pucareiro e do seu fabuloso jumento, o Albino, que ele educara como um filho, que tratava como um irmão e a quem queria mais que à mulher.

- Lá se me foi o negócio rio abaixo. O Albino nunca me teria causado desgraça tamanha!- Desabafava sempre que o episódio vinha a propósito duma prosa afim.

O Albino era um jumento mágico que tinha, entre outras comprovadas faculdades, a de cagar libras e falar com o dono por acenos de cabeça e ornejos codificados.

Na secura de Verão, que é quando a sede mais aperta, ou na frialdade do Inverno, quando mais se necessita de um bom tónico para aquecer, parava o Pucareiro à porta da taberna do Mimoso, soberbamente montado e sem se apear e nada dizer, dava um piparote nas orelhas do Albino que de imediato soltava dois estridentes zurros, correspondente a dois copos de três.

Não tardava o taberneiro a vir à porta trazendo dois enormes púcaros de vinho. O Pucareiro antes mesmo de emborcar o dele de uma assentada, enfiava o do Albino pela goela respectiva que para tanto já se havia posto a jeito, levantando o focinho, mostrando os dentes e escancarando a bocarra, como se sorrisse de contentamento. Ao prolongado ah… do dono correspondia o Albino com um equivalente ornejo de igual satisfação.

Cena trivial, recorrente que merecia o comentário mordaz da Aida quando, por mero acaso, ou talvez nem tanto, assistia de passagem, invariavelmente tapando a cara com uma ponta do lenço escandalizada com o que via:

-Tão borracho é o dono como o burro. Mal-empregado vinho!

Também a lendária faculdade do burro do Pucareiro, perdão, do jumento Albino, cagar libras era publicamente comprovada. Por vezes as moedas saíam mesmo embrulhadas em bolas de palha e cevada moída. E tão grande era o encanto que assistentes mais crédulos logo se propunham comprar o Albino ao dono. Negócio que o Pucareiro invariavelmente declinava, porém, dizendo que era uma virtude que só entre ele e o Albino funcionava, porque havia palavras e gestos que não se ensinavam facilmente. Homem honesto o Pucareiro, como se vê.

Vamos aos factos. Reunida suficiente assistência, o Pucareiro começava por fazer as festas da praxe na cabeça do Albino e segredava-lhe ao ouvido algo que ele bem entendia porque retorquia com um ornejo aquiescente.

O sardinheiro dava uma volta em torno do partenaire, mostrava as mãos à assistência, arregaçava levemente as mangas, aproximava-se da traseira do animal, levantava-lhe levemente o rabo e eis que, milagrosamente, se viam duas ou três moedas doiradas surgir entre os dedos do festejado putriqueiro, quando não se ouviam tilintar nas pedras da calçada. Nem mais! Sem truques nem magias.

Dizia a Alzira Xedra que aquilo era bruxedo, coisas que o Pucareiro aprendera no Livro de São Cipriano. Ao que contrapunha a inevitável Aida Malagueta:

- Olhe que as libras são sempre a mesmas, ti Alzira! E sabe-se lá onde o Pucareiro as foi arranjar! Encontrou-as pori, no buraco “dalguma” parede. Dá-as a engolir ao burro na véspera, embrulhadas na palha e na cevada, depois é só apará-las no cú do animal.

 Enfim! Mistério entusiasmante, como se vê.

Certo e sabido é que o inefável sardinheiro, quando estava afim, também tirava libras da barriga de um ou outro chicharro. Chegou a vender caixas de peixe de uma assentada a um só freguês mas quanto a libras, nada. Nem por isso a magia caiu em descredito embora também se constasse que um dia alguém, porque se sentisse intrujado, esteve, vai-não-vai, para chegar a roupa ao pelo ao criativo sardinheiro que, diga-se a propósito, era um fraca roupeta.

Mais mirabolante ainda assim, terá sido a cena rocambolesca em que o jumento Albino alertou o dono para um roubo de sardinhas. Feito lendário reportado como tendo acontecido em diferentes aldeias, a gosto do narrador que a conta, sendo certo que nalguma aconteceu.

Terá sido num dia de Inverno, que é quando escurece cedo. Viu-se o Pucareiro constrangido a pedir pernoita num casal isolado, à beira do caminho, sem que tivesse muita confiança com os moradores.

Acomodado o Albino, aliviado da carga e abonado com magra gabela de palha, o Pucareiro subiu para o sobrado onde lhe fora destinado catre, fora das vistas do companheiro e das caixas de peixe. Ainda argumentou que dormia bem no monte de palha ao lado do Albino mas o hospedeiro insistiu que não senhor que era mais comodo o sobrado. Alumiou-lhe o caminho com a candeia, atirou-lhe uma pesada manta e retirou-se, deixando tudo mergulhado na escuridão.

Manhã cedo, mal a alvorada rompeu, tratou o Pucareiro de arrear a montada. Depois de instalar a carga e quando já se preparava para pagar a pernoita em género, deu-se conta de que durante a noite alguém mexera numa das caixas.

 Assistiam à cena, impávidos, o dono da casa e a mulher que tão generosamente o haviam acoitado. Não era homem, o Pucareiro, porém, para entrar em confronto aberto por tão baixo preço. Era adepto, isso sim, de uma mais fina e indirecta estratégia.

Enfiou calmamente a cabeçada na cabeça do Albino e pisou discretamente a rédea por forma a estica-la e a fazer abanar a cabeça do jumento concertadamente com diálogo que estabeleceu com o fiel companheiro:

- Tu que me dizes?! Tem juízo! E quantas sardinhas roubaram?!

Doze vezes o Albino abanou a cabeça, por força do pé do Pucareiro que pisava a rédea e contava em voz alta para que os circunstantes ouvissem.

- Uma dúzia? Tens a certeza?

Confirmou o burro com mais uma abanadela da cabeça por força de novo pisar na rédea.

O casal hospedeiro estava boquiaberto e embaraçado por ter sido descoberto e logo por um burro. Não se conteve a mulher que, comprometida, confirmou o roubo, regateando:

-Olhe que o seu burro é aldrabão, ti Pucareiro. Eu só tirei meia dúzia! Três pra mim e outras três pró meu Zé, como paga da pensão.

- Pois fique sabendo, dona, que o Albino nunca me mentiu.- Retorquiu o sardinheiro.

E, dirigindo-se ao Albino, rematou:

-Fica então bem paga a pensão, companheiro! Concordas?

Claro que o Albino abanou uma última vez a cabeça por força do pé que lhe pisava a rédea. Boquiabertos, os hospedeiros, nem coragem tiveram para reclamar da conta.

Uma semana depois já a história era conhecida por todas as aldeias em redor, contada com muito gozo e ironia, se bem que quem a relatou a primeira vez o tenha feito de forma mais humilde e discreta.

Ainda hoje, quando alguém, em circunstância de amena cavaqueira, se sai com alguma história deste género, surpreendente, sempre há um ouvinte que exclama:

- Bô! Essa é como a do burro do Pucareiro.