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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Saudades saudosas



Hoje

sem querer

dei comigo a lembrar

pessoas que conheci

e não voltei a ver

 

Terras de encantar por onde passei

ou fugazmente vivi

e aonde não tornei

 

Locais da selva onde acampei

campos de batalha onde combati

praias em que me banhei

templos em que orei

desilusões que sofri

 

Amores a que não fugi

outros tantos que evitei

para mais não sofrer

 

Sonhos do passado

que teimam ser sonhados

por não quererem morrer

 

Sítios de magia

repositórios de História e fantasia

almas a quem me irmanei

em campanha inglória

 

Aventuras cor-de-rosa

que não quero esquecer

que relembro com saudade

neste poema de amizade

a florir

 

É uma minha forma de amar

de verdade

e sofrer

com poesia

 

São saudades saudosas

a teimar

em não partir

 

 

Vale de Salgueiro, domingo, 26 de Abril de 2009

Henrique António Pedro

 

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

“AMO-TE”



Há mil formas de declarar o nosso amor a alguém

sem dizer “amo-te”

ou fazer uso de qualquer outros modos e tempos do verbo amar

 

Poderemos mesmo dizê-lo sem proferir a palavra “amor”

e ao arrepio das regras gramaticais

ainda mais

e melhor

 

Se assim não for

como poderão os surdos-mudos

dizer “amo-te”

às suas apaixonadas?

 

Ou os amantes de língua chinesa

declarar o seu amor

às suas namoradas de outras línguas

que não entendam o mandarim

nem conheçam um só carácter chinês?

 

Há mesmo

muitas outras formas de dizer “amo-te”

sem ter que escrever

abraçar

ou beijar

 

Poderemos dizê-lo com o olhar

oferecendo uma flor

dedicando um poema

ou simplesmente ficando em silêncio ao lado de quem

a quem

queremos dizer

“amo-te”

 

De resto a palavra “amo-te”

já está tão gasta pelo uso

que perdeu a originalidade

quiçá

a autenticidade

 

Poderá ser até um abuso

aleivosia

despudor

 

como vês

muitas outras formas de dizer “amo-te”

sem do verbo amar fazer uso

 

Como continuar a escrever poesia

Apenas por amor

 

Vale de Salgueiro, domingo, 7 de Março de 2010

Henrique António Pedro

 

 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

UM POEMA DE AMOR AGRIDOCE


(Imagem Google)


Os meus passos perdem-se

na manhã fria de Janeiro

o meu bafo é cansaço

envolto em nevoeiro

 

Na montra da pastelaria

bolas de Berlim

riem-se para mim

em doce apelo

na sua loquaz afasia de riso amarelo

de língua de fora

 

Entro

de pronto

sem mais demora

 

Já ela me espera impaciente

sentada a um canto

com os lábios de amora pintados de chocolate quente

 

Oh, que doce encanto!

 

De pronto os meus olhos se banham na água mineral natural cristalina
que brota dos seus olhos verdes de menina
que verte da garrafa que traz na alma
sem rótulo
nem trade mark

Ainda de pé

sem me sentar

peço um café

e um croquete de camarão

Ela

coquete

lê de imediato o poema prometido
sem ritmo nem sentido

abstrato

que escreveu para minha apreciação


Versos que me mordem o coração

embora com delicadeza

mas é a arte poética

que se parte patética

com tamanha falta de vocação

à parte tanta beleza

 

Fico feliz

ainda assim

com o poema dela que de si nada diz

nem sequer daquela mulher de formusura

 

Percebi

por fim

encantado

que ela a mim me votava uma amor doce

a que eu desalmado respondi

com o presente poema agridoce

que só gora

muito embora

lhe dedico com doçura

 

Mirandela, quinta-feira, 28 de Janeiro de 2010

Henrique António Pedro

 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O ensaio da morte

(Imagem Google)

(in Introdução à Eternidade,1.ª Edição, Outubro de 2013)

 

A ser

o Além

será uma espécie de sonho do sono

pesadelo ou felicidade

sem possibilidade de se acordar

e de retornar à realidade

 

É um viver etéreo

sem nascer ou morrer

um ver sem olhos

um ouvir sem ouvidos

um prazer sem sentidos

um voar sem asas

um permanente flutuar

uma vida descolorida

sem boa ou má sorte

um gozar sem prazer

um sofrer sem doer

um ermo sem guarida

um eterno refrigério

 

A ser assim

o Além

é uma espécie de sonho sem realidade

um mundo sem rumo

sem fio de prumo

nem norte

 

E a ser assim

sonhar

quando o corpo adormece

e o espírito permanece

sem suporte

é o ensaio da morte

 

Vale de Salgueiro, domingo, 1 de Abril de 2012

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Só de olhar


(Imagem Google)


Já a Primavera se transmuda em Verão

Já o Sol se põe e muda de posição

deixando atrás de si um resplendor alaranjado

que se desvanece e me deixa extasiado

enquanto o céu escurece

e a Terra se encobre de escuridão

 

Já a Lua brilha cristalina

já se acende a estrela vespertina

depois outra após outra

marchetando o Firmamento

que por fim se ilumina de cerúleo polimento

mais abrangente

 

Nenhuma ideia brilhante

nenhuma palavra redundante

uma rima sequer

indiciam poemas na minha mente

 

Nem eu tristonho me predisponho a poetar

assim mergulhado na soledade do fim do dia

extasiado com a serenidade da contemplação

 

Sob o olhar da Lua

que em silêncio percorre o céu e me olha

como se estivesse ali postada

ela sim

para a mim me contemplar

e cobrir com o seu véu

 

Mas eu não tenho dilemas

penas para espiar

ninguém para namorar

nada de poemas

um verso que seja para escrever

apenas solidão

 

Nada à Lua posso dar

nada a Lua me oferece

à Lua nada pedi

 

A poesia acontece

por si

mesmo sem inspiração

 

Só de olhar

 

Vale de Salgueiro, 20 de Junho de 2012

Henrique António Pedro

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nas entranhas carcomidas de um castanheiro milenar


(in Anamnesis (prosaYpoesia) 1.ª Edição: Janeiro de 2016)


Eu já fui rei

 … um dia

 

Por breves mas felizes anos

de um plácido e amplo reino

sem equívocos nem enganos

que tinha por singular palácio

um carcomido castanheiro

 

No tempo em que os montanheses

ainda usavam tamancos de amieiro

apascentavam rebanhos na serra

e desmatavam a terra safara

para semear searas de centeio

 

Enquanto dóceis ruminantes

manadas de bois e vacas

pastavam nos lameiros verdejantes

e nos úberes linhares

floriam abóboras e batatas

 

Palácio plantado num espaço breve

a norte de Vila Nova de Monforte

num contraforte isolado

votado ao sol e à neve

na suave serra da Padrela

 

Não havia então outra aldeia

tão fresca, farta e sadia

como ela

 

A árvore milenar erguia-se majestosa

à entrada do humilde povoado

com outras castaneáceas menores

a compor a sua corte silenciosa

um souto frondoso e bem copado

 

E diz-me o douto coração da memória

e da imaginação

de tão longínqua tradição

que já os próceres suevos e godos

por ali reuniam os seus povos em comícios

sob a ramagem de místicos castanheiros

ao luar dos mágicos solstícios

ou em certas manhãs de nevoeiro

para dirimir querelas entre clãs

celebrar alegres festejos rituais

consumar sagrados esponsais

ou eleger chefes guerreiros

sempre que por toda a serra

sopravam ventos de guerra

 

Foi também à sua beira

tão perto que muito ouriço

dava à luz já sobre o adro

que seria mais tarde edificado

pequeno templo votado a Santo António

oficina de religião e virtude

onde o aldeão piedoso orava

quebrantava o enguiço

e se demarcava do demónio

 

E a dois passos dali

mal espaçados

murmurejava noite e dia

a cristalina fonte comunitária

que dessedentava humanos

e animais adrede

e a água que era demais

seguia seu curso livremente

pela natureza em frente

tecendo rendilhada líquida rede

 

Até que nos tempos ditos modernos

a empestaram com pesticidas

supostamente para livrar de pragas a terra

mas que maiores chagas abriram

no ecossistema de toda a Serra

 

Era aquele o meu reino

de encanto

e os meus aposentos reais

as entranhas do tronco cavernoso

todas moldadas em castanho

onde apenas entrava quem eu queria

gente do meu tamanho

e que se aventurava

a tanto

 

Ali me refugiava sempre que a vida

cá fora me não sorria

ou recebia chamamento especial

para viajar pelo Cosmos

dentro de um castanheiro carcomido

transformado em nave espacial

 

Era eu o rei daquele plácido reino

com perfumado palácio no seio

dum carcomido castanheiro

onde aprendi a enfrentar todo o mal

a não ter medo de sonhar

a ser senhor de mim mesmo

e a ter um domínio só meu

 

 

E também aprendi

por experiência interior

nas entranhas carcomidas

de um castanheiro milenar

que a única competição justa e lícita

de um homem verdadeiro

é consigo próprio na verdade

 

E que com todos os demais

que no talento e no saber

nascem e são desiguais

apenas deverá haver

solidariedade

 

Vale de Salgueiro, 9 de Dezembro de 2007

Henrique António Pedro

 

( Imagem: Google)