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terça-feira, 19 de junho de 2018

Apalpando a alma



Apalpando a alma

Afago a cabeça

Mimoseio-me 
numa tentativa de me encontrar
mas não me encontro
nem é a mim que tacteio

Não me enxergo
no crânio escalvado
acabado de sair do barbeiro

Mas sinto uma sensação
suprema
que me percorre o corpo inteiro
me pacifica
e me acalma o coração
embora esprema
a Razão

Transfiro-me para as cabeças dos dedos das mãos
com que apalpo a caixa craniana
em que se aloja o encéfalo

Sinto-me
no curto-circuito que se estabelece
entre a pele dos dedos
e a Mente
sucedânea

E dá-me prazer ficar assim
por momentos 
a andar à roda
atrás de mim
como pescadinha de rabo na boca
de olhos vendados
a jogar comigo
à cabra-cega

Que melhor prova posso querer
da existência de mim
se é a minha alma
que a si própria
se apalpa?!

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Uma lua cheia de uma cruz



Uma lua cheia de uma cruz

Há na minha aldeia uma Cruz
Iluminada
Desmedida
Que todas as tardes se acende
E eu vejo recortada no horizonte da noite
Desde o sítio onde moro

Agora que já são quentes as noites de Primavera
E as tílias impõem o seu doce perfume
Aos demais odores que povoam a atmosfera

Também eu me inebrio por dentro
E confundo pensamento com sentimento
Enquanto espero que a lua cheia se levante
Suave
Com seu véu resplandecente
Mesmo por de trás da Cruz iluminada
Que se recorta no horizonte do céu
Da minha aldeia

Atrai-me o confronto do brilho diamante da Lua
Recortada na negritude do Universo ponteado de estrelas
Com o fogo da luz da Cruz iluminada pelos homens

E é no exacto momento em que a Lua enquadra toda a Cruz
Envolto de soledade e quietude
Que fico sem saber distinguir

Que coisas são amar e sofrer
Presente e devir
Pecado e virtude

Então aspiro apenas ser um todo
Sem dores ou amores
Sem distinção entre pensar e amar
Limpo de dúvidas e de angústias!
Será isso Deus?

In Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais-2009)



terça-feira, 5 de junho de 2018

Presságio sibilino



Numa noite gélida de Inverno

de corpo a coberto da geada cortante

pelo calor de mantas e lençóis

que é quando melhor o sono sabe!

 

E no Firmamento esférico

pequeninos sóis cintilantes

iluminam visões de irrealidade

 

E como o espírito nunca dorme

mesmo se a mente adormece

sonhei um sonho feérico

colorido como o tecto da Capela Sistina

e palpitante de vida como as figuras irreais

que os geniais pincéis de Miguel Ângelo

ali pintaram para a posteridade

 

As cinco Sibilas me falaram, no sonho, uma a uma

misteriosas e belas como se impunha

 

Falou primeiro, Ciméria, sacerdotisa de Apolo

que me disse com voz firme e grave:

- O verdadeiro problema da Humanidade

  não é o aquecimento global ou o carvão!

 

E a segunda foi Prisca, a Eritreia

que disse tão enigmática como a primeira:

- Nem a escassez de alimentos!

 

E a terceira foi Dafne, a Délfica

por sua vez mais estranha que a segunda:

- E muito menos a desertificação!

 

E a quarta foi a sibila Líbia

que disse mais enigmática que a terceira:

- Também não é a guerra!

 

E a quinta foi Sambeta, a Pérsica

também ela misteriosa e séria:

- Nem sequer o moderno terrorismo!

 

Levantei a voz, perplexo, para as interpelar:

- Fazeis jus ao nome, sois enigmáticas e sibilinas!

  Quais são então os problemas da Humanidade?!

  Qual é a vossa verdade minhas meninas?!

 

Responderam-me as cinco de pronto

em uníssono e sibilino coro:

- Os verdadeiros males da Humanidade

   que ameaçam converter a Terra

   num planeta estéril e vazio

   e desabitado como Vénus e Marte

   são a Mentira insidiosa

   que mata a Verdade e mina a Civilização

   a Ganância desenfreada

   que deixa a maior parte sem pão

   porque tudo quer e não respeita nada

   o Vício generalizado

   que mata o corpo e embrutece a mente

   a Vaidade demente

   que divide e humilha toda a gente

   e a Intolerância cruel

   que escraviza e endurece o coração

 

Céptico e entristecido redargui desta sorte:

- Muitos humanos lutam para se libertar

   para ter tempo de viver e amar

   mas nenhum sobrevive à morte!

 

Então as cinco esfíngicas figuras cantaram

em tom grave, pausado e melodioso

este presságio cruel que me fez acordar:

- Todos vós, humanos, sobrevireis à morte

   porque sois Corpo mas também Espírito

   e o Espírito é eterno e nunca morre!

   Mas nem todos vós vos libertareis da dor

   e alcançareis o estado de pleno Amor

   antes ou depois de morrer

   por não ser esse o vosso querer!

   Tratai que uma vaga de Amor e Verdade

   avassale toda a Humanidade!

   e salvai a Terra, se a vós vos quereis salvar!

 

Vale de Salgueiro, 29 de Janeiro de 2008

Henrique António Pedro

 



domingo, 3 de junho de 2018

Agora outros galos cantam pela madrugada



Agora outros galos cantam pela madrugada

O relógio da sala tocou a nota musical introdutória
com poesia
embora igual para todas as horas certas
ou incertas
(os quartos e as meias têm outras melodia)
e depois deu doze sonoras badalas
espaçadas
metálicas
marteladas

Entristece-me que os mestres relojoeiros de relógios analógicos
não hajam construído mais relógios zoomórficos
para lá dos cucos a que damos corda
para que continuem a cucar
mesmo que não seja à hora certa
e o seu canto
pela certa
não vá ninguém
acordar

Concorrendo com os modernos “timers” digitais
dos anúncios de néon feéricos nas avenidas
de dígitos a piscar no ar
virtuais
com quantas casas decimais se pretender
em consonância com o que se quiser comprar
ou vender

Preferia ouvir os relógios analógicos badalar
em contraposição à insana inovação
que põe milhares de relógios digitais a piscar
por toda a parte
acelerando ainda mais o tempo
e obrigando as pessoas a correr
ainda mais

Ainda assim
quanto a mim
todos acabamos por andar
dessincronizados com o Cosmos

Por isso preferia ouvir os relógios analógicos badalar
crocitar
cucar
e porque não
balir
para me despertar
pela madrugada

Como quando era o galo
madrugador
que com seu estridente estertor
anunciava a alvorada

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)



sábado, 26 de maio de 2018

Afinal as fadas existem









Afinal as fadas existem

 

Esta estória sucedeu já no Inverno passado
mas só agora achei o momento asado
para a contar

Vestia a minha soberana samarra transmontana
e o boné
que uso quando o mau tempo acomete
assim como apareço em fotos difundidas pela net

pelo que não seria difícil alguém me referenciar

Sentado à mesa de um café
a tomar o pequeno-almoço
embora só estando presente até ao pescoço
a minha cabeça não estava ali

tanto que de nada nem me apercebi


De olhar fixo num ponto dentro de mim
embora sem nada ver
dentro e fora

o meu espírito vogava
e pensava
que a vida é um desencanto


Tanta coisa linda
em que acreditamos quando criança
e nos inunda de esperança
que até nos causa espanto
mas que depois concluímos não existirem

e que nos são contadas só para nos iludirem

 

É o Pai Natal
o Menino Jesus
as fadas

as musas
a democracia
o mítico Portugal
as moiras encantadas
as bruxas
e mesmo as palavras esdrúxulas.

Tudo fantasia!

Quanto a bruxas,

Ah!
Sei que continua a haver quem diga
que não acredita
mas que as há,

Há!
Mas isso é outra cantiga

Estava eu nestas tergiversações supra reais

quando senti algo

ou alguém

tocar-me ao de leve
muito suavemente

no ombro

para meu assombro
já que não esperava ninguém

Seria gente?

Uma fada?
Uma bruxa?

Uma musa?
Um pingo de chuva?

Talvez fosse alguma palavra esdrúxula

que com o Acordo Ortográfico andam disparatadas

já que são agora acentuadas

ora de grave ora de circunflexo.

Pensei.

 

Não liguei de imediato

mas ao segundo toque despertei,

perplexo

 

Não era a chuva

uma bruxa

nem uma palavra esdrúxula

que essas não tocam assim

 

Era uma fada verdadeira

de carne osso

perfumada

de cara iluminada

pelo olhar

e que usou o sorriso sedutor

como varinha de condão

para me tocar o coração

 

E me falou

para me dizer

que me adorava ler

mas que achava os poetas pouco fiáveis

porque não sabem guardar segredos

 

Todos os amores e medos

grandezas e fraquezas

que alguém cai na asneira

mesmo se por brincadeira

de com um poeta partilhar

é sabido que vão parar à net

e a todo o Universo

ir-se-ão espalhar

em verso

embora nem sempre se saiba

a quem o poema remete

 

Por isso ela ali me aparecia

para com a sua fantasia

tornar credível

a minha poesia

 

Mas que tinha a certeza

que eu lhe iria dar razão

já no próximo poema

versando este tema

 

Tocou-me o coração

respondeu afirmativamente ao meu convite

de “aparece quando quiseres”

e desapareceu

deixando-me no limite

em alvoroço

 

Afinal as fadas existem

e são de carne e osso

 

Perfumadas

radiosas

amorosas

 

Assim como mulheres!

  

Vale de Salgueiro, sexta-feira, 10 de Setembro de 2010

Henrique António Pedro


in Mulheres de Amor Inventadas (1.ª Edição, Outubro de 2013)

quinta-feira, 24 de maio de 2018

A poesia de amor nasceu nos olhos de uma mulher apaixonada





A poesia de amor
nasceu da luz da Lua
do esplendor do luar
reflectido no olhar
de alguma mulher nua
apaixonada

Quando o homem assim amado
tomado de amor e fantasia
lendo esse poema original
nos olhos da sua amada
de paixão assim tomada
e de irrealidade coberta
abriu o coração sentimental
e se fez poeta

E não tardou a aprender
a de amor sofrer

A não dizer a verdade
sem mentir
a fingir
para sua dor iludir
melhor se compreender
e consolar

Poemas de amor são lágrimas de luar