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domingo, 5 de maio de 2024

Uma etérea flor astral do jardim de minha mãe



Nasci de amor perfumado

qual flor de jasmim no jardim de minha mãe florido

onde meu pai havia semeado

embevecido

especial etérea semente astral

fruto do seu coração também

 

Nove meses andei escondido

naquele ventre doirado

protegido de todo o mal

ungido e baptizado na fé de Cristo

depois de haverem decidido

que o seu filho bem quisto

desejado por tanta gente 

haveria de nascer

à hora do sol nascente

 

Continuo sem saber

porém

a que pedra

a que fonte

a que estrela

a que ar ou a que água

foram meu pais escolher

essa etérea flor astral

com tão amorosa frágua

 

Porque nasci e vivi

e por crer que sou imortal

espero um dia podê-los rever

sem mágoa

também porque para meus pais

que moram agora no além

eu

jamais

morri

 

Vale de Salgueiro, domingo, 15 de março de 2015

Henrique António Pedro

 

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Peço a Deus que recrie o homem e leve a mulher de volta para o paraíso

 


Eu peço a Deus que recrie o homem!

 

Que lhe dê corpo mecânico

com pernas e braços hidráulicos

facilmente desaparafusáveis

e substituíveis

 

Com transistores e fusíveis nos sentidos

sistemas de vídeo nos olhos e ouvidos

um computador no lugar do cérebro

e uma bomba hidráulica no lugar do coração

alimentados por energias renováveis

e óleos biodegradáveis

para não afectar a Natureza

nem as demais espécies

 

Um homem que não sofra de angústia existencial

nem sinta dores físicas ou paixões

e que possa encostar na berma da estrada se o combustível faltar

podendo o espírito continuar a passo

sem embaraços nem buzinões

já que não haverá viaturas a circular

 

E não havendo sofrimento físico

nem sendo derramado sangue

apenas óleos e fluidos recicláveis

os horrores da guerra e do terrorismo

da fome, da doença, da miséria e da poluição

desaparecerão da superfície da Terra

 

Um homem que possa expiar as suas culpas ao ar livre

num cemitério de automóveis

não no inferno

e que sempre possa trocar a alma

para um modelo mais moderno

 

Peço ainda a Deus

que quando for forçoso morrer

seja suficiente buzinar o cláxon para dizer adeus

 

e voltar reencarnado num avião

ou mesmo numa nave espacial

 

É minha convicção

que apenas com um homem assim

salvo melhor juízo

se salvará a Civilização

 

Quanto à mulher

Deus meu

podereis levá-la de volta para o Paraíso

e deixá-la lá assim como é

que nenhum mal advirá ao mundo

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 17 de Julho de 2008

Henrique António Pedro

 

 

 

 

 

domingo, 28 de abril de 2024

Eis o Amor!


 

Eis o Amor!

Nalgum momento

Certamente

Sentis-te que amavas alguém

E o declaraste

 

Nalgum momento

Certamente

Também ouviste alguém dizer que te amava

 

Em ambiente cor de rosa

Á luz das velas de uma mesa de jantar

No tálamo nupcial

Numa amorosa noite de luar

Ou de um romântico pôr do sol

 

Tomado de lícito desejo

Enlevado de irresistível paixão

Em paga de um terno beijo

Ou por mera piedosa mentira

 

Na euforia de uma vitória

Na alegria de uma festa

Por efeito de um copo de vinho

De uma taça de champanhe

De uma inopinada hormona

 Ou de uma libidinosa feromona

 

Por piedade ou compaixão por alguém que sofria

E cujo sofrimento também a ti te condoía

 

Será natural se assim for

 

Porém

Apenas sentiste

Disseste

Ou ouviste uma efémera imitação de Amor

 

Porque

Certamente

Dificilmente algum dia

Sentiste e declaraste que amavas alguém

Sabendo que esse alguém nada tinha para te dar de volta

E muito menos a quem te ofendeu

Ou martirizou

 

Mas aquilo que Jesus Cristo sentiu pela Humanidade inteira

Mesmo pela turba que O injuriou

Pelos algozes que O crucificaram

E o proclamou do alto da Cruz

Exangue e agonizante

Sem que ninguém Lhe tenha dito que O amava

Para lá de Sua Santa Mãe

Isso sim é Amor

 

Vale de Salgueiro, 16 de Março de 2008

Henrique António Pedro

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Medeia


Melhor seria não ter olhos para a ver

e me deixar fascinar

pelo seu olhar

 

Melhor fora ser surdo e mudo

para não poder ouvir o seu canto de sereia

nem poder responder e me deixar enredar

nos encantos da sua melopeia

 

Não ter braços para a abraçar

sem mais a poder largar

 

Nem ter sexo para a desejar

e ela

por reflexo

me poder a mim me cobiçar

 

Melhor seria que eu não tivesse coração

nem Razão

para não cair nesta cruel contradição

 

Mas a vida é assim

e assim sendo

não me arrependo

 

Mais vale sentir todos os sentidos abertos e despertos

e não a poder largar

nem ela

a mim

me poder abandonar

 

Mais vale sentir-me Jasão aprisionado

a seu lado

e sabê-la

a ela

a sereia Medeia

falaz

a mim acorrentada

sem poder fugir

 

 

Ouvir seu pranto de mulher apaixonada

sem ser capaz de resistir

 

Sem deixar de acreditar

que o espirito acabará por se libertar

 

Vale de Salgueiro, terça-feira, 24 de Agosto de 2010

Henrique António Pedro

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Canção de Abril a abrir

 


Nota prévia:

Poema escrito na Ilha de Moçambique, em 25 de Abril de 1971, precisamente. Por isso o tomo como uma inusitada, angustiada, saudosa e confusa premonição da revolução de 25 de Abril de 1974.

 

 

Canção de Abril a abrir

 

Perpassam veleiros entre mim e a História

Nesta tarde inglória de Abril

A abrir

 

Prostrado que estou em praia lânguida

Assalta-me a ideia cândida

De negar o corpo à guerra

E regressar à minha terra

 

Neste eterno mar de desentendimento

Sereno depois que em mim amainou

O Inverno do meu descontentamento

 

Calmo oceano para mim que sou do interior

Para quem nenhum mar é forma de vida

Mas tão somente praia perdida

Onde a minha alma fica dormente

 

Alma de quem está ausente

A travar batalhas de tormento

A tecer mortalhas de sentimento

Com que o coração envolve a razão

 

Noutro veleiro o horizonte se materializa, agora

À hora de me ir embora

 

Não é meu este mar

Esta água e este ar

É lá e não aqui a minha terra

 

Nenhuma é a minha guerra

 

Justo é viver em paz

Seja lá onde for

A mim tanto me faz

 

Ainda que injusto fosse o desforço

Tão fraco é o fosso

Que frágil veleiro consegue transpor

 

Quantas vez mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Heroico será ir além do Bojador

Voltar à terra quando se é do interior

Se não tem o mar por ganha pão

Muito menos a morte por condição

 

Humano para mim

Ainda assim

Será sonhar cruzar de novo o mar

Idear novo Império

Outro Ultramar

Feito de História e luso Verbo

Sem sombra de vitupério

 

Abrir os olhos na neblina

Assumir o destino divino

Passar a sina e o sinal

Das novas pátrias

Dádivas do pródigo Portugal

 

Pátrias sem equadores a cortar a Justiça

Nem cores a estigmatizar as almas

 

Calmas são as tardes de Abril

A abrir

 

Ouço embevecido o frenesim das batucadas

Sorvo o sabor de mangas maduras

Sofro a saudade das melodias electricistas

O sofrimento das romãs ensanguentadas

A dor do caju retorcido

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

 

Quantas vezes mais darei o meu corpo à guerra?

Porque não invade o mar a terra?

                                                        

Ilha de Moçambique, 25 de Abril de 1971

Henrique António Pedro

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Assobio e sigo em frente


Comigo é assim

E consigo

Por certo

Também

Já se vê

 

Milhares de ideias me afloram à mente

Assim de repente

A cada instante

Vindas sabe-se lá de onde

Como

E porquê

 

Muitas são absurdas

Aborridas

Negativas

Carregam tristeza

São lembranças de coisas sofridas

Temores de dores ainda não vencidas

 

São sentimentos de desânimo

Que nos amarram e torturam

Nos oprimem e angustiam

Sem nexo nem sentido

 

Comigo é assim

Dessas ideias aprendi a libertar-me

Viro-lhe as costas

E sigo em frente a assobiar

 

Mato-as à nascença

Nem lhes dou tempo sequer de respirar

 

Vale de Salgueiro, quinta-feira, 9 de Outubro de 2008

Henrique António Pedro 

in Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais – 2009)