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quarta-feira, 27 de junho de 2018

Sento-me de novo na mesma pedra de sempre



Sento-me de novo na mesma pedra de sempre

Dei volta à vida
mundo fora

Rodou o tempo
outro é o vento
mas nada 
ou quase nada
mudou

Volto agora
a sentar-me na mesma pedra
emoldurada de hedra
postada no recinto
da velha ermida
voltada para Poente
erguida numa colina sagrada 
da minha amada
Terra Quente

Que bem que aqui me sinto!

O mesmo Firmamento
as mesmas luarentas noites de Verão
que me marcaram a mente 
e iluminaram o coração

As mesmas estrelas
as mesmas constelações 
os movimentos de sempre

As mesmas emoções
a mesma silenciosa solidão
os mesmos sonhos
a mesma Fé
a mesma oração
a mesma ânsia de verdade

De diferente
apenas e só…
mais
e ainda mais
da mesma…
Saudade

in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)

terça-feira, 26 de junho de 2018

Percebi isto, hoje, em dia de chuva



Percebi isto, hoje, em dia de chuva

Hoje
percebi que os pinheiros abrem as copas
e distendem os ramos
em direcção ao céu
abençoando a chuva
que lhes dessedenta as raízes
e fertiliza a terra

Que vivemos além da vida
na medida em que temos fé
e nos damos
para lá de nós

Quando amamos
e semeamos flores
e amores

Quando criamos animais
plantamos árvores
e nos alegramos
mesmo estando sós

Quando geramos filhos
ou escrevemos poemas
que florescem alegres e livres
como os lírios do campo
ou as aves do céu
que se alimentam livremente dos frutos
das árvores que plantamos

Quando o vento
que nos fustiga o rosto
se transforma em brisa
e a ira se adoça
e suavizamos a voz

Quando compreendemos que a vaidade
e a glória
não têm sentido
e que mais tino tem
dar
e amar

Vivemos além da vida
na medida em que temos Fé
e nos damos
para lá de nós

Embora ter Fé
seja não acreditar em nenhuma coisa concreta
mas simplesmente manter 
uma porta
aberta

Percebi isto, hoje, em dia de chuva


in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)


sábado, 23 de junho de 2018

Agora que os calos das minhas mãos florescem em rosas






Agora
que os calos das minhas mãos florescem em cravos
e rosas
que o suor do meu rosto frutifica em cerejas
e gotas do meu sémen geraram filhos
muito queridos

Agora que as minhas ideias se concertam em poesias
que os meus afectos encontram ecos em mil amizades
e aprendi a partilhar dores e alegrias

Agora
que admito que as minhas derrotas
foram justas vitórias de outrem 
e cuido que as minhas vitórias
não sejam a humilhação de ninguém

Agora que conheço o fascínio de amar
que ainda não perdi o encanto de sonhar 
e aprendi a converter angústias em preces

Agora
que da vida já não espero outras benesses
que não as de viver com verdade e amor

Agora já posso dizer
com fervor:
- Vale bem a pena viver!
Bem hajas, ó Criador!

 
in ANAMNESIS (1.ª Edição: Janeiro de 2016)




terça-feira, 19 de junho de 2018

Apalpando a alma



Apalpando a alma

Afago a cabeça

Mimoseio-me 
numa tentativa de me encontrar
mas não me encontro
nem é a mim que tacteio

Não me enxergo
no crânio escalvado
acabado de sair do barbeiro

Mas sinto uma sensação
suprema
que me percorre o corpo inteiro
me pacifica
e me acalma o coração
embora esprema
a Razão

Transfiro-me para as cabeças dos dedos das mãos
com que apalpo a caixa craniana
em que se aloja o encéfalo

Sinto-me
no curto-circuito que se estabelece
entre a pele dos dedos
e a Mente
sucedânea

E dá-me prazer ficar assim
por momentos 
a andar à roda
atrás de mim
como pescadinha de rabo na boca
de olhos vendados
a jogar comigo
à cabra-cega

Que melhor prova posso querer
da existência de mim
se é a minha alma
que a si própria
se apalpa?!

in Anamnesis (1.ª Edição: Janeiro de 2016)


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Uma lua cheia de uma cruz



Uma lua cheia de uma cruz

Há na minha aldeia uma Cruz
Iluminada
Desmedida
Que todas as tardes se acende
E eu vejo recortada no horizonte da noite
Desde o sítio onde moro

Agora que já são quentes as noites de Primavera
E as tílias impõem o seu doce perfume
Aos demais odores que povoam a atmosfera

Também eu me inebrio por dentro
E confundo pensamento com sentimento
Enquanto espero que a lua cheia se levante
Suave
Com seu véu resplandecente
Mesmo por de trás da Cruz iluminada
Que se recorta no horizonte do céu
Da minha aldeia

Atrai-me o confronto do brilho diamante da Lua
Recortada na negritude do Universo ponteado de estrelas
Com o fogo da luz da Cruz iluminada pelos homens

E é no exacto momento em que a Lua enquadra toda a Cruz
Envolto de soledade e quietude
Que fico sem saber distinguir

Que coisas são amar e sofrer
Presente e devir
Pecado e virtude

Então aspiro apenas ser um todo
Sem dores ou amores
Sem distinção entre pensar e amar
Limpo de dúvidas e de angústias!
Será isso Deus?

In Angústia, Razão e Nada (Editora Temas Originais-2009)



terça-feira, 5 de junho de 2018

Presságio sibilino



Numa noite gélida de Inverno

de corpo a coberto da geada cortante

pelo calor de mantas e lençóis

que é quando melhor o sono sabe!

 

E no Firmamento esférico

pequeninos sóis cintilantes

iluminam visões de irrealidade

 

E como o espírito nunca dorme

mesmo se a mente adormece

sonhei um sonho feérico

colorido como o tecto da Capela Sistina

e palpitante de vida como as figuras irreais

que os geniais pincéis de Miguel Ângelo

ali pintaram para a posteridade

 

As cinco Sibilas me falaram, no sonho, uma a uma

misteriosas e belas como se impunha

 

Falou primeiro, Ciméria, sacerdotisa de Apolo

que me disse com voz firme e grave:

- O verdadeiro problema da Humanidade

  não é o aquecimento global ou o carvão!

 

E a segunda foi Prisca, a Eritreia

que disse tão enigmática como a primeira:

- Nem a escassez de alimentos!

 

E a terceira foi Dafne, a Délfica

por sua vez mais estranha que a segunda:

- E muito menos a desertificação!

 

E a quarta foi a sibila Líbia

que disse mais enigmática que a terceira:

- Também não é a guerra!

 

E a quinta foi Sambeta, a Pérsica

também ela misteriosa e séria:

- Nem sequer o moderno terrorismo!

 

Levantei a voz, perplexo, para as interpelar:

- Fazeis jus ao nome, sois enigmáticas e sibilinas!

  Quais são então os problemas da Humanidade?!

  Qual é a vossa verdade minhas meninas?!

 

Responderam-me as cinco de pronto

em uníssono e sibilino coro:

- Os verdadeiros males da Humanidade

   que ameaçam converter a Terra

   num planeta estéril e vazio

   e desabitado como Vénus e Marte

   são a Mentira insidiosa

   que mata a Verdade e mina a Civilização

   a Ganância desenfreada

   que deixa a maior parte sem pão

   porque tudo quer e não respeita nada

   o Vício generalizado

   que mata o corpo e embrutece a mente

   a Vaidade demente

   que divide e humilha toda a gente

   e a Intolerância cruel

   que escraviza e endurece o coração

 

Céptico e entristecido redargui desta sorte:

- Muitos humanos lutam para se libertar

   para ter tempo de viver e amar

   mas nenhum sobrevive à morte!

 

Então as cinco esfíngicas figuras cantaram

em tom grave, pausado e melodioso

este presságio cruel que me fez acordar:

- Todos vós, humanos, sobrevireis à morte

   porque sois Corpo mas também Espírito

   e o Espírito é eterno e nunca morre!

   Mas nem todos vós vos libertareis da dor

   e alcançareis o estado de pleno Amor

   antes ou depois de morrer

   por não ser esse o vosso querer!

   Tratai que uma vaga de Amor e Verdade

   avassale toda a Humanidade!

   e salvai a Terra, se a vós vos quereis salvar!

 

Vale de Salgueiro, 29 de Janeiro de 2008

Henrique António Pedro